Touro de mais, bolsa de menos: mercado cai 12,9% no Brasil neste ano, descolado do resto do mundo

O Brasil passou dias demais falando de um touro exibido que chegou, sem aviso prévio, à calçada da Bolsa de Valores de São Paulo, a B3, no último dia 16. Um touro dourado de gosto duvidoso, réplica do famoso touro cartão postal de Wall Street, em Nova York. Se lá ele expressa o vigor e a força da bolsa de valores mais importante do mundo, no Brasil de 2021 a cópia soou como ofensa quando pessoas estão fazendo fila para pegar um osso em açougue e não morrer de fome. Assim, ele partiu carregado por um guindaste na noite de terça, com mais celebração que lamentos, a não ser do artista plástico que o criou. Mas o emblemático touro desavisado tem mais do que um contraste estético e social com os moradores de rua que transitam pelos arredores da Bolsa. Tudo que a B3 não mostrou este ano foi vigor e força nos negócios. Ao contrário. A bolsa acumula queda de 12,9% em 2021, o que sugere um reflexo de uma malfadada economia pós-pandemia da covid-19.

Além dos efeitos que alcançam o mundo todo, como a desorganização das cadeias produtivas, uma crise autoinfligida com a alta da inflação e, a reboque, da taxa de juros, descolou o mercado acionário do Brasil do resto do mundo. “Taxas de juros altas concorrem com a bolsa porque aplicações reajustadas pelos juros se tornam mais atrativas para o investidor”, explica Paulo Cunha, dono da iHUB Investimentos. Ou seja, quem pretende ter rendimentos de ações muda para as aplicações remuneradas pelos juros altos para se defender da desvalorização imposta pela inflação. A taxa Selic, referência para as operações de crédito, passou de 2% em janeiro para 7,75% este mês, justamente para controlar a alta de preços. A previsão é que o IPCA, índice oficial da inflação, feche em dois dígitos este ano, mais que o dobro da meta de 3,75% deste ano. O quadro tem feito diversas empresas adiarem a abertura de capital este ano. As que arriscaram, explica Cunha, tiveram de recomprar ações de suas empresas para não perder tanto valor de mercado.

Um levantamento da empresa de análises Economatica mostra que o Ibovespa, principal índice da Bolsa de Valores brasileira, caiu mais que outros mercados da América Latina, como Peru (-3,9%) e Colômbia (-8,45%). O índice argentino (Merval), por outro lado, registrou alta de 63,5%. Também acumulam altas no ano as bolsas mexicana (+16%) e chilena (+12,4%). Numa simulação feita pelo o economista André Perfeito, sócio da Necton Investimentos, um investidor que aplicou 100 dólares no Brasil no último dia útil de 2018, teria 81,1 dólares atualmente. Se o mesmo valor fosse aplicado na bolsa argentina, o investidor teria hoje 108,4 dólares. No México, 115,9, e se fosse nos EUA, 189,17 dólares.

André Perfeito lembra que a Bolsa não necessariamente reflete a economia, como pode ser visto no caso da Argentina. “O índice Merval é pequeno e, por características locais, seus papéis conseguiram captar melhor a alta dos juros no país”, afirma. No caso do Brasil, a participação de bancos, commodities e cervejaria ―setores muito prejudicados pela crise sanitária― tem um peso grande no desempenho do Ibovespa. “Os bancos sofreram muito com a alta dos juros”, diz o economista.

Diferentemente do que acontece nos Estados Unidos, onde a bolsa é o principal veículo de financiamento das empresas. O Governo Biden lançou um pacote para estimular a economia, ancorado em um plano de infraestrutura de 550 bilhões de dólares, que já tem impacto forte em países da América Latina, especialmente no México e América Central. “No México, o mercado é muito sensível ao que acontece nos Estados Unidos”, explica Perfeito, por isso a recuperação mais rápida do indicador.

Incertezas

Gabriela Joubert, head de análise do Inter, explica que a bolsa brasileira teve forte alta na primeira metade do ano, motivada, principalmente, pelas empresas de commodities. Contudo, desde meados de julho, “vimos uma reversão desta tendência, conforme o risco fiscal no país se elevava, em razão das incertezas quanto às reformas a serem aprovadas e controle de gastos do Governo”. O ponto crucial foi o estouro do teto de gastos em outubro, afirma Joubert. Paulo Cunha, da IHub Investimentos, também vê nessa mudança de discurso do Governo sobre a política fiscal boa parte da explicação para o desempenho da bolsa atualmente. “Um Governo relativamente liberal parece ter deixado de lado temas como privatizações e controle de gastos numa tentativa de se eleger a qualquer custo”, observa. Cunha lembra que a curva de juros explodiu a partir do momento que o Governo, nas figuras do presidente Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes, começou a falar em pedalar os precatórios, e o Auxílio Brasil. “Isso [curva de juros] impacta muito a Bolsa brasileira, porque as ações nada mais são do que um fluxo futuro trazido a um valor presente”, diz.

A instabilidade causada pela decisão do Governo de adiar o pagamento de dívidas impostas pela justiça (os chamados precatórios) e utilizar esses recursos para complementar o novo programa social Auxílio Brasil ―que substituiu o Bolsa Família―, ao mesmo tempo em que fura o teto de gastos, fez azedar o relacionamento do Governo e investidores do mercado financeiro. “Mais que notícia positiva, o mercado cobra é menos incerteza. E com menos incertezas, vemos espaço para recuperação no curto prazo”, diz Joubert.

Cunha, entretanto, entende que a bolsa vive um clima de campanha eleitoral antecipada, que vai prejudicar, por exemplo, o lançamento de novos IPOs até o ano que vem. “Ano eleitoral já é difícil, não veremos um mercado aquecido como no passado”, acredita. A bolsa virou um indicador de sucesso dos Governos da vez. O total de investidores chega a 4 milhões, quase 30% a mais do que há um ano e três vezes mais do que em 2018. Era exatamente o juro em baixa que fez a festa da B3. Agora azeda o humor dos investidores, e tira o touro dourado de cena.

El País

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