Enquanto a mídia entretém a opinião pública especulando com vazamentos sobre nomeações de futuros ministros e o próprio núcleo da equipe de transição espanta o país com declarações desencontradas acerca de diferentes temas – numa prévia do que poderá vir a ser o governo de direita sob a presidência do ex-capitão Bolsonaro – a população estarrecida sente os efeitos do agravamento da situação do país e começa a sobressaltar-se com a incerteza sobre o futuro.
Terreno delicado, que provoca inquietações para além das nossas fronteiras é a política externa, sobre a qual pessoas desqualificadas, porque não afeitas ao tema, dão declarações estapafúrdias, plantam notas em veículos de comunicação, revelam contradições intestinas na equipe de transição de governo, fazem eco a falas de ex-embaixadores e autoridades estrangeiras, sobre questões delicadas e até perigosas para a soberania nacional, quando submetidas ao trato indiscreto e superficial.
Com apenas dez dias passados desde o segundo turno, o próprio presidente eleito e membros destacados de sua equipe soltaram o verbo sobre a Venezuela, o Mercosul, a Otan, a Base de Alcântara, o grupo Brics, a China, Cuba, para citar apenas os que alcançaram maior repercussão e provocaram celeuma.
Entre afirmações e desmentidos, algo chama a atenção, como sinal da desmedida influência que têm setores ou indivíduos ligados às Forças Armadas, em geral oficiais da reserva que galgaram postos importantes no futuro governo Bolsonaro, deixando entrevisto que o setor externo poderá sofrer influência castrense, mesmo que formalmente o chanceler designado venha dos quadros do Itamaraty.
Seria algo prejudicial ao país que isto ocorresse. É preciso ressaltar que nem mesmo durante a ditadura militar a Casa de Rio Branco deixou de ter protagonismo na formulação e operação da diplomacia. É sintomático que os setores mais reacionários e entreguistas das classes dominantes tenham caracterizado pejorativamente como “terceiro-mundista” a política externa de determinado período da ditadura militar.
Por óbvio, sempre há que se considerar a notória conexão existente entre política externa, política de defesa nacional, política de segurança hemisférica e internacional e os temas geopolíticos correlatos, como paz e guerra, participação em missões da ONU, atuação como país mediador de conflitos, relação com organizações multilaterais e cooperação bilateral e internacional na área militar. Foi rica a experiência dos governos dos ex-presidentes Lula e Dilma no que concerne à harmoniosa convivência entre a estratégia de política externa e a estratégia nacional de Defesa.
A rigor, porém, é necessário preservar a autonomia relativa da área diplomática e evitar a ingerência do militarismo e do impulso geopolítico imperialista de determinados setores das classes dominantes brasileiras.
O Brasil deve distinguir-se no concerto internacional como país soberano, solidário, universalista e defensor da paz mundial.
Desde o fim da ditadura militar, mormente nos debates que resultaram na redação da Constituição de 1988 – cujo aniversário de 30 anos foi celebrado no início desta semana por tantos dos seus violadores sentados à Mesa da Câmara dos Deputados – foi intenso o debate político sobre o papel e o lugar da instituição militar na vida nacional. Papel e lugar que ninguém nega, muito pelo contrário. Desde a formação do primeiro governo civil da Nova República, até os nossos dias, este papel foi fortalecido e, malgrado as dificuldades financeiras pelas quais passaram as três armas, decorrentes da crise fiscal e da psicose neoliberal quanto à formação do Estado mínimo, foram corretas as relações mútuas entre o poder civil e os responsáveis pela Defesa nacional, que pareciam exclusivamente ligados a atividades estritamente profissionais. A atividade diplomática foi uma dessas áreas preservadas da ingerência militar. Por isso, ressaltamos, é no mínimo incômodo que oficiais da reserva com posição de destaque na equipe de transição e já designados para funções de mando no próximo governo, um deles por ter sido eleito vice-presidente da República, opinem apressadamente sobre temas tão sensíveis e comprometedores do desenvolvimento e da própria soberania nacional.
As declarações sobre derrocar o presidente legítimo da Venezuela soaram como uma assombrosa ameaça de guerra, a predisposição a romper relações com Cuba afronta a inteligência e o espírito de solidariedade dos latino-americanos, o repúdio ao Mercosul despertou a oposição até mesmo de governos potencialmente aliados a um Brasil conservador e neoliberal, como o argentino, as vociferações sobre a China e o Brics foram interpretadas aqui e lá fora como uma aventura que pode comprometer o comércio exterior brasileiro e a atração de investimento estrangeiro direto – no caso do chinês, disponível em grandes volumes e qualitativamente virtuoso porque baseado numa política de ganha-ganha, algo de que mais necessita o nosso país nesta fase de estrangulamento de sua economia.
O Brasil democrático e patriótico não pode deixar que seja comprometida a inserção soberana do país num mundo tão hostil, competitivo, conflituoso e ameaçador. A luta por uma política externa altiva e ativa, baseada na cooperação internacional, na defesa da paz, no multilateralismo e na integração soberana com países e povos irmãos faz parte da resistência e da plataforma da frente pela democracia a ser construída pelas forças que representam os 47 milhões de sufrágios de oposição ao presidente eleito.
Na ação oposicionista e nos esforços para construir a frente pela democracia, na formulação de sua plataforma de luta, é indispensável unir e entrelaçar um projeto nacional de desenvolvimento com os interesses democráticos e populares de amplas camadas do povo brasileiro, sob a liderança de forças progressistas.