Na semana passada, um repórter perguntou insistentemente ao porta-voz da Presidência da República qual teria sido o crime cometido por Glenn Greenwald, jornalista que revelou as mensagens supostamente trocadas entre Sérgio Moro e integrantes da força-tarefa da Lava Jato. O porta-voz, então, leu fala do presidente Jair Bolsonaro em que dizia que “invasão de telefone é crime e ponto final”.
Acontece que não foi o jornalista que invadiu o aplicativo Telegram para obter as mensagens. Pelo que se sabe até agora – e isso pode mudar no decorrer das investigações – os suspeitos de praticar as invasões ao aplicativo repassaram as mensagens entre Moro e procuradores ao veículo de imprensa de forma anônima e não remunerada. A ex-deputada Manuela D’Avila, que teria feito a ponte com o jornalista, declarou que também foi contatada de forma anônima.
Coube então ao próprio presidente – que já havia dito que o jornalista “talvez pegasse uma cana aqui no Brasil” – indicar a tipificação do crime. Segundo Bolsonaro, se trata no caso de crime de receptação. Esse é o mesmo enquadramento defendido por muitos usuários nas redes sociais. O que não falta lá são associações entre a divulgação das mensagens pelo jornalista e camelôs que vendem produtos oriundos de roubo de carga.
Mas será que ao divulgar as mensagens obtidas ilegalmente por terceiros, teria o jornalista cometido crime de receptação? A bem da verdade, muito do foco das atenções tem recaído na figura de Glenn Greenwald e do Intercept Brasil, mas as mensagens vêm sendo divulgadas também por outros veículos jornalísticos, como a Folha de São Paulo, a revista Veja e o El Pais.
De acordo com o Código Penal, incidirá no crime de receptação quem “adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”. Será que as mensagens (fruto de comunicações privadas) divulgadas pela imprensa são “coisa que sabe ser produto de crime”?
Assim como todas as leis, o Código Penal precisa ser lido à luz da Constituição Federal, que protege, além da liberdade de expressão e do acesso à informação, o “sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Em tempos tão conectados, o que não falta é uma série de ferramentas para proteger a identidade de fontes e garantir a comunicação de quem procura a imprensa para vazar informações de interesse público. A mesma internet que permite ocultar a identidade também pode ser usada para rastrear uma comunicação. Por isso o sigilo de fonte, garantido na Constituição, é tão importante.
Além disso, os dispositivos penais devem ser interpretados restritivamente, pois não raramente representam uma limitação importante aos direitos fundamentais daqueles que são condenados. O Direito Penal é o campo do Direito menos afeito a interpretações extensivas. Dessa forma, o legislador ao utilizar a expressão “coisa que sabe ser produto de crime” faz referência àquilo que pode ser objeto de apropriação. Coisas que uma vez transferidas saem do patrimônio de um para ingressar no patrimônio de outro. Os exemplos de crime de receptação são geralmente automóveis, eletrônicos e produtos diversos.
Vale lembrar ainda que o legislador penal, quando quer criminalizar condutas que envolvem o uso ilícito de “informações”, assim o faz. É o caso da chamada Lei Carolina Dieckmann, que inseriu no Código Penal o artigo art. 154-A. Segundo o artigo, é crime “invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”.
Aliás, se confirmada a atuação dos suspeitos presos pela Polícia Federal, é provável que um dos fundamentos do processo criminal seja justamente o art. 154-A. As penas do artigo vão de 3 (três) meses a 1 (um) ano, mas existem agravantes se as vítimas forem autoridades e elas podem ser cumuladas. Caso a polícia confirme um número amplo de pessoas que tiveram o aplicativo Telegram invadido, essas penas podem ser somadas, alcançando uma condenação expressiva.
Existe outro efeito colateral decorrente da classificação de informação e comunicação como “coisas” que podem ser objeto do crime de receptação. Não está no radar das discussões políticas nas redes sociais, mas vale lembrar que esse mesmíssimo debate está refletido no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 403, previsto para ocorrer em breve no Supremo Tribunal Federal.
Para quem não se lembra, esse é o caso em que o STF vai decidir sobre o bloqueio do WhatsApp no Brasil e o futuro da criptografia de ponta-a-ponta adotada pelo aplicativo. Em uma petição (amicus curiae) apresentada pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), aparece a tese pela identidade entre informação/comunicação com mercadorias e bens recebidos por terceiros.
Segundo a AMB: “Uma empresa de transporte de ‘encomendas’ que faz concorrência com os Correios nessa atividade econômica (…) estará submetida, como os Correios, a qualquer ordem judicial que determinar, por exemplo, a “busca e apreensão” de determinada encomenda que seja suspeita de integrar uma conduta criminosa (encomenda de “drogas” por exemplo). (…) No Brasil, não poderia uma empresa de transporte de encomendas — repita-se e insista-se, ainda que fosse uma das maiores do planeta — exercer sua atividade econômica com a promessa aos seus clientes de que suas encomendas seriam INDEVASSÁVEIS.”
A lógica da petição da AMB é clara: assim como as encomendas que trafegam pelos serviços de entrega não podem ser indevassáveis, as comunicações no WhatsApp devem também poder ser interceptadas para fins de averiguação pelas autoridades competentes. Essa analogia é poderosa, mas ela exagera ao associar encomendas físicas à informação e à comunicação privada.
Uma encomenda que vai pelo correio não traz consigo toda a proteção constitucional da liberdade de expressão. Em certa medida, é o mesmo debate envolvendo o vazamento das mensagens da Lava Jato. Confundir mercadorias que foram fruto de crime com informações de interesse público que podem ter sido obtidas de modo ilícito implica desconsiderar o papel que a liberdade de expressão (e no caso a liberdade de imprensa) desempenha no cenário constitucional.
Abrir mão da proteção da liberdade de imprensa no caso das mensagens da Lava Jato pode ser o primeiro passo para também abrirmos mão da nossa liberdade de expressão e privacidade nas mensagens particulares que trocamos no WhatsApp. Afinal de contas, informação e comunicação não seriam iguais a qualquer encomenda ou mercadoria? Se fosse assim, tanto os jornalistas poderiam ser condenados por receber mensagens vazadas, como a polícia poderia obrigar o WhatsApp a quebrar a criptografia para ler mensagens particulares. E com isso estaríamos dando dois passos perigosos: restringindo a atuação da imprensa e fragilizando a segurança da criptografia.
É preciso perceber as importantes consequências de se assemelhar informação e comunicação com bens materiais que podem ser roubados e transferidos. Comunicação não é uma encomenda; ela não se assemelha a um pacote que pode ser transportado de um lado para o outro e eventualmente inspecionado no meio do caminho. São justamente os direitos à liberdade de expressão e à privacidade que garantem um regime legal diferenciado para as comunicações privadas.
Da mesma forma, a divulgação pela imprensa de mensagens de interesse público não é crime de receptação, ainda que elas tenham sido obtidas por meios ilícitos. Quem cometeu os ilícitos para obter as mensagens precisa ser punido, mas a publicação daquilo que exclusivamente atende ao interesse público está protegido pela liberdade de imprensa. A veiculação desse conteúdo, para fins criminais, não se confunde com mercadoria e encomenda. Salvo, é claro, se ela for encomendada.
Carlos Affonso